Capítulo 2
– Meu Deus... o que...? – Xingamentos absurdos irromperam tanto de Terry quanto do homem sem nome, sendo que este se retorcia e se virava para pegar de novo o peso do espelho. Embora ele não pudesse articular, sua pergunta era óbvia: Quem era essa mulher? E como ela tinha caído de um espelho?
Os dois tropeçaram e então colocaram o espelho no chão que produziu um clangor ressonante. Deixaram que o peso o inclinasse para a frente, de modo que ficasse com a face espelhada voltada para o piso.
– Não! –Disse Sophia, levantando-se com jeitinho, rolando o quadril para que pudesse apoiar-se em uma das mãos, estirando a outra em uma súplica desesperada. – A superfície deve ficar voltada para o céu. – Ah, sim, pensou, isso seria ótimo. Desferiu um olhar de relance para cima, como se as estrelas pudessem prover-lhe a resposta que procurava.
Não as estrelas, mas a lua. Desafiando o ainda ardente sol que estava se pondo, a pálida forma da lua brilhava entre as claraboias, tão circundantes quanto as janelas panorâmicas que cercavam o aposento. Sophia levou sua mão que antes estava estirada, e repousou junto ao seu esterno com delicadeza enquanto falava em um tom fraco:
– É Halloween – disse ela, explicando o motivo disso.
Halloween, aniversário de seu aprisionamento e a noite em que os mortos podiam caminhar entre os vivos. Sophia não estava exatamente morta, mas décadas se passaram desde que ela podia considerar-se um dos vivos.
Ela voltou o olhar contemplativo para baixo, para o espelho, ignorando por um momento a dupla perplexa que o segurava e estudou a superfície reflexiva que virara tanto a prisão como o elemento preservador de Sophia. A moldura dourada e ornamentada ocultava segredos que ela havia aprendido a desvendar. Mesmo agora conseguia ver os encantamentos carmesins nas intricadas espirais e nas flores, e pegou-se falando o que estava escrito, apenas mexendo os lábios, sem realmente vocalizar as palavras, apesar de estar ciente dos perigos. A moldura fora um objeto cênico no único filme que fizera, mas especulava-se que ela havia sido sequestrada na Alemanha, e até mesmo os nazistas de Hitler haviam procurado por Sophia para adicionarem-na à coleção oculta do Kaiser.
O Oculto. Sophia pressionou os olhos, cerrando-os, sentindo os cílios tremerem em contato com a pele.
– Eu lembro... – As palavras perderam-se em um sussurro e ela estremeceu bem de leve.
Você não deveria brincar com essas coisas, Sophia. São perigosas e estão além do seu conhecimento. O diretor do filme, Jeremy Claussen, a avisara repetidas vezes. Estes são dias perigosos para expressar interesse em coisas além deste mundo. Tome cuidado, minha querida. Seja cautelosa.
Ele era tudo o que uma jovem mulher desejava. Belo, de um jeito perigoso, como um falcão. Seu encanto vinha da presença marcante tanto quanto da aparência. E, sim, era misterioso. Como Sophia poderia resistir àqueles olhos que reluziam repletos de conhecimento e segredos sombrios? Sophia fora atraída por Jeremy aos poucos, até que um dia acordou aprisionada como uma mosca no âmbar.
Sophia estremeceu, abrindo os olhos para examinar além do espelho e do casal que a resgatara. Um salão de baile familiar ampliava-se a seu redor, com imensas janelas panorâmicas emolduravam a cidade de Los Angeles. Seu aprisionamento havia acontecido neste mesmo aposento, apenas um cômodo dentre dúzias da mansão que pertencera a Jeremy Claussen. Era perfeito, pensou de novo. Embora o espelho tivesse sido movido de lugar muitas vezes durante o tempo em que fora cativa, havia voltado para onde tudo havia começado.
Quando fora aprisionada, o aposento estava preparado para a festa da estreia de seu filme. Agora, décadas depois, um palco estava montado junto às janelas em uma das extremidades, claramente preparado para algum tipo de apresentação. Sophia inspirou, trêmula, desvendando o cálido aroma de poeira e finalmente ouviu Terry erguendo a voz em protesto.
– Alan, isso é algum tipo de pegadinha insana?
– Terr, eu não sou tão bom para criar algo assim. Ajude-me a colocar o espelho no chão.
– Por favor. – A voz de Sophia era um sussurro novamente. – Coloquem-no voltado para cima. Assim que o luar não tocar mais a face espelhada, serei sugada para dentro dele de novo. – Ela ergueu o olhar suplicante e encontrou os olhos de Alan.
A escuridão enlaçava-o, filetes de trevas emanavam do pôr-do-sol e o envolviam em um abraço. Alan não notou nada disso, sorria para ela com uma fascinação clara enquanto ele e a mulher colocavam gentilmente o espelho no chão com sua superfície espelhada refletindo a lua distante. A visão de Sophia afunilava, com espíritos movendo-se rapidamente e dançando em volta de Alan. Espíritos, mas não os mortos. Sophia conhecia-os muito bem depois de passar sessenta anos no lado frio do espelho. Aqueles eram espectros da vida e do futuro.
Do futuro de Alan. Mil reflexões dele em tons de sépia que pulavam no campo estreito que Sophia ainda conseguia ver. Era o dom do espelho, a troca concedida por mantê-la refém durante décadas sem fim: precognição. Este não tinha sido o dom que ela buscara quando cruzara o espelho, mas ao menos recebera algo em troca.
Mais do que algo, Sophia Robinson, sussurrou para si. A Morte passou por você e foi embora.
Contudo, não passaria por Alan. Uma fissura jazia na frente dele, um vácuo profundo que continha o mundo que Sophia mal reconhecia e, ao mesmo tempo, conhecia e cobiçava em um lugar que ia além de palavras. Luzes brilhantes recaíram sobre Alan e varreram a multidão de tamanho inimaginável. Eles ergueram as mãos, segurando fogo e girando bastões de neon no ar, e gritavam o nome de Alan. Terry, com seu corte de cabelo masculino e uma guitarra, estava em pé atrás dele. Era uma de quatro pessoas que apoiavam Alan enquanto ele cantava. Todos cheios de uma paixão tão brilhante que ardia como chamas nos sorrisos deles, assim como na forma como se jogavam ao redor do palco. Variações daquele futuro apareciam tão rapidamente quanto a música de Alan mudava, mas, em todos os cenários, sua vida seria de glória e duraria além dos meros anos que um homem poderia clamar.
O outro lado daquela fissura era desconhecido, porém, facilmente reconhecido como sua antítese. Luzes fracas e um bar ruidoso, garrafas de cerveja jogadas na gaiola que cercava a banda. O longo cabelo de Alan não era mais saudável e estilizado, mas fraco e ensebado, e a luz nos olhos dele havia se apagado. Da banda que Sophia vira em sua primeira visão, apenas Terry ainda estava ao lado de Alan e estava tão fraca e emaciada quanto Alan. A paixão não os impulsionava mais... nem mesmo o desespero. Era o hábito, frio e embotado com o passar do tempo. Aqueles futuros estilhaçaram-se em lugares cada vez mais sombrios e escuros: drogas, bebida e uma vida que acabara anos antes sem que o corpo tivesse acompanhado essa morte.
Sophia ficou sem fôlego e pressionou as pontas dos dedos nos lábios. Alan e Terry terminaram de colocar o espelho no chão e ele se virou, ainda curvado, para oferecer um sorriso cheio de fascínio e confusão para Sophia. Até mesmo a pergunta dele, O que está acontecendo aqui?, parecia não conter nenhuma rejeição, mas sim o impulso de mergulhar na história de Sophia e descobrir as respostas. Ele apoiou as mãos nas coxas e, em pé, deu um passo na direção dela, ofereceu-lhe galantemente a mão.
Oh, sim. Ele faria isso. Faria isso com perfeição. Ele Era Alguém, ou seria, exatamente como Sophia esperava. Um herói para estrela sua história, forte, silencioso e vigoroso. Juntos, emergiriam da obscuridade de “bandas de garagem” –termo este que aprendera quando o espelho esteve em uma sala de TV nos anos áureos dos canais de música – e de filmes B,fazendo com que o futuro brilhante que previra para ele se torne realidade.
– Sophia. – Ela pôs a mão na de Alan. – Sophia Robinson. – Ele a levantou, trazendo-a para si com sua cálida pegada e deslizou uma das mãos pelas costas de Sophia, perto da cintura, de modo a mantê-la equilibrada. Ela sorriu, sentindo o ultraje transbordando de Terry enquanto o sorriso de Alan ficava mais intenso. – Sophia – sussurrou ela, como se fosse um dom, e o sorriso dele ficou insensato.
– Jesus Cristo, Alan – exclamou Terry com a voz carregada de tensão, em uma combinação de descrença e confidência. – Essa é a mulher que desapareceu de um filme, tipo, em 1942.